Livros que deixam marcas
Perguntaram-me, em tempos, quais os livros que mais me marcaram. A resposta veio rápida, quase instintiva: A Palavra, de Irving Wallace, e O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago. À primeira vista, pode parecer estranho juntar dois autores de contextos tão diferentes, com estilos e narrativas que percorrem caminhos distintos. Mas, quanto mais reflito, mais percebo o que os une: a coragem de confrontar as verdades absolutas, de desconstruir o que tomamos como inquestionável, e de nos deixar à mercê das nossas próprias interrogações.
Irving Wallace, com a sua abordagem narrativa meticulosa, dá-nos em A Palavra uma visão poderosa sobre o impacto de um manuscrito que desafia as fundações da fé. Não é apenas um thriller literário; é um convite a pensar sobre como o poder e a religião moldam as sociedades e as consciências. Já Saramago, com a sua prosa densa e profundamente humana, desmistifica o sagrado em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, trazendo uma figura divina para um terreno visceralmente humano, repleto de dúvidas, medos e desejos.
O que têm estes dois autores em comum é a ousadia de enfrentar tabus, de explorar territórios literários onde as ideias e as crenças são postas em xeque. Ambos nos entregam histórias que, em última análise, não oferecem respostas definitivas, mas perguntas profundas. Perguntas sobre fé, poder, moralidade e o papel das instituições — sejam elas religiosas ou políticas — na construção da nossa identidade.
E é aí que encontro a ponte para os desafios da sociedade de hoje. Vivemos numa era de verdades líquidas, onde a informação é abundante, mas a sabedoria parece escassa. As instituições que antes pareciam inabaláveis estão fragilizadas pela desconfiança, pela manipulação e pelo ruído constante. E, no meio desse caos, falta-nos a coragem de questionar, de duvidar, de confrontar as estruturas que ainda nos governam, seja no plano espiritual, seja no social.
Talvez o maior desafio seja encontrar espaço para o silêncio — o silêncio que antecede a reflexão, que nos permite ouvir as nossas próprias inquietações. É nesse espaço que os livros de Wallace e Saramago habitam. Eles lembram-nos que, por mais que o mundo tente impor-nos certezas, é no confronto com o incómodo que verdadeiramente crescemos.
Hoje, mais do que nunca, precisamos dessa coragem. De escavar o que está enterrado, de olhar para o que evitamos, de dar voz à palavra e ao questionamento, mesmo que isso nos tire da zona de conforto. Afinal, o que é a literatura senão uma bússola para nos orientar nas sombras do desconhecido?