Travessia: A jornada de uma Alma
O sol espreitava tímido no horizonte, estendendo os primeiros raios sobre a imensidão do mar. Uma criança despertava, sentindo o rosto afundado na areia húmida. Com os olhos ainda pesados de cansaço, ergueu a cabeça lentamente, e os grãos finos e salgados da praia colaram-se à pele. Respirou fundo, sentindo o cheiro da maresia misturado com o suor seco que lhe impregnava o corpo. As ondas iam e vinham, num movimento rítmico, quase hipnótico, como se tentassem acalmar a angústia que começava a tomar forma no seu peito.
Ficou ali por um momento, sem saber ao certo onde estava. A água salgada tocava-lhe os pés descalços, trazendo uma sensação de frescura que contrastava com o peso da areia nas pernas. Com dificuldade, levantou-se, cambaleando, e olhou ao redor. A praia estendia-se até onde a vista alcançava, deserta e silenciosa, exceto pelo som constante das ondas. Virou-se então para o mar, aquele mesmo mar que tantas vezes ouvira falar, mas que até então só conhecia em sonhos. A vastidão azul estendia-se à sua frente, imponente e indiferente, como um gigante adormecido.
Foi então que as lembranças começaram a voltar.
Lá, na sua aldeia, na vastidão árida de uma terra esquecida, a vida era difícil. A seca castigava as plantações, os alimentos eram escassos e a água ainda mais rara. As noites eram longas, e os dias, cheios de trabalho e privações. Mas, apesar de todas as dificuldades, havia esperança. Ouvira histórias contadas pelos mais velhos, sobre uma terra distante, do outro lado do oceano, onde tudo era diferente. Uma terra onde as pessoas viviam em liberdade, sem medo, onde as crianças podiam correr despreocupadas e o futuro parecia sempre promissor.
"A terra dos homens brancos", diziam alguns. "A terra dos sonhos", murmuravam outros.
E assim, como muitos antes dela, a criança começou a sonhar com essa terra. Sonhava com comida em abundância, com roupas bonitas, com uma vida livre das dores e das preocupações que marcavam a sua existência. Sonhava em correr por campos verdes, em ver cidades tão grandes que faziam as montanhas parecerem pequenas. E, pouco a pouco, o sonho foi-se tornando um desejo ardente, uma necessidade incontrolável de escapar daquela realidade que a prendia.
A decisão de partir não foi fácil. Sabia dos perigos. Todos sabiam. A travessia era longa e o mar traiçoeiro. Muitos tentavam e nunca chegavam. Mas o desejo de alcançar a liberdade era maior que o medo. Reuniu coragem, deixou para trás a aldeia, os poucos amigos, e embarcou numa aventura que mudaria tudo.
O mar, porém, era implacável. Os dias e as noites na embarcação foram de uma agonia silenciosa. O balanço das ondas, que no início trazia um certo fascínio, logo se tornou um martírio. A fome corroía o estômago, e a sede secava a garganta. As pessoas ao redor, amontoadas umas sobre as outras, gemiam baixinho, sem forças para gritar ou pedir ajuda. Todos sabiam que estavam à mercê do destino. O mar decidia quem vivia e quem morria.
E foi então, num breve momento entre o desespero e a esperança, que tudo ficou escuro. A criança não sabia ao certo quando havia adormecido ou quando havia sido engolida pelo cansaço. Lembrava-se apenas de sentir a água fria, o sal a queimar os olhos, e depois... nada.
Agora, ali de pé, olhando para o mar que parecia tão calmo, questionava-se: valeu a pena? Teria valido a pena aquele sofrimento, a dor, o medo, a incerteza de cada instante?
Sentiu o vento suave bater-lhe no rosto, como um toque de despedida. Fechou os olhos e deixou que as lembranças a invadissem. Lembrou-se da mãe, do sorriso cansado dela ao dar-lhe o último pedaço de pão. Lembrou-se dos irmãos, correndo pela terra seca, de pés descalços a levantar poeira. Lembrou-se dos amigos que, como ela, também sonhavam com a terra distante, mas que ficaram para trás. E lembrou-se, sobretudo, do último olhar da mãe, carregado de uma tristeza silenciosa, mas com uma ponta de esperança.
"Vai, meu filho", dissera ela. "Encontra a liberdade que aqui não temos."
Aquelas palavras reverberavam agora, enquanto o mar continuava a sua dança indiferente. A criança perguntou-se se teria realmente encontrado a tal liberdade. Será que do outro lado do mar havia algo além da promessa? Ou será que, como muitos, estava destinada a perder-se entre as ondas, sem nunca alcançar o sonho que tanto acalentara?
Os pés da criança afundavam um pouco mais na areia enquanto ela permanecia imóvel, com os olhos fixos no horizonte. Havia uma quietude estranha no ar, como se o próprio mundo tivesse parado por um instante para observar o seu questionamento.
Será que a liberdade existe para todos? A pergunta teimava em permanecer no pensamento.
Então, um pensamento súbito atingiu-a: e se não houvesse mais nada? E se aquele momento, de pé sobre a areia, fosse tudo o que lhe restava? Sentiu uma pontada de tristeza, mas também de alívio. De alguma forma, já não importava. O peso da jornada dissipava-se aos poucos, e, de repente, tudo parecia fazer sentido.
Olhou para o próprio corpo. Sentia-se leve, quase etérea, como se estivesse a flutuar. O cansaço da travessia, a fome e a dor, tudo isso parecia ter ficado para trás. Lentamente, percebeu que algo estava diferente. Os contornos da sua forma começavam a desaparecer, como se fosse feita de névoa, e a terra sólida sob os seus pés parecia cada vez mais distante.
E então compreendeu.
Atravessar o oceano não era sobre chegar a um novo mundo, mas sobre deixar para trás o antigo. O sofrimento da travessia não era em vão, pois não tinha a ver com alcançar um lugar físico, mas com a jornada da alma, com a libertação de tudo o que a prendia ao passado.
A criança sorriu suavemente. Olhou para o mar uma última vez, sentindo agora uma ligação profunda com ele. Era como se, no final, o mar tivesse sido, desde sempre, o seu verdadeiro destino. As ondas, tão calmas agora, pareciam sussurrar-lhe segredos antigos, histórias de outras almas que também haviam feito a travessia.
Deu um passo à frente, sentindo-se cada vez mais leve. O mundo ao seu redor desvanecia-se, e ela, agora apenas uma brisa suave, deixou-se levar pelo vento. Não havia mais dor, nem fome, nem medo. Havia apenas paz.
A alma da criança, enfim, partiu.
O corpo, inerte, ficou ali, deitado sobre a areia, enquanto as ondas lentamente o envolviam. E o mar, na sua infinita sabedoria, acolheu-o de volta, como sempre fizera com todos os que ousaram sonhar.
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Ao longo da praia deserta, o sol já se erguia no céu, lançando os primeiros raios dourados sobre a imensidão azul. A travessia havia terminado.